Sobre a Michi

Conheci a Michi num bar no oeste da cidade. Ela chegou, cabelos curtos e loiros, jeito de nova-iorquina, também recém-chegada à Berlim. Eu ainda estava sem saber direito os meus lugares, me perdia quase toda vez que saía de casa, e andava com uma angústia sem saber se afinal vir pra cá tinha sido a decisão certa.

Dizem que é difícil fazer amigos depois de adulto, mas vai ver , eu tenho sorte.

A Michi tem olhinhos claros muito vivos, e ela parece aquelas meninas que a gente vê nas ilustrações dos contos de Grimm. Às vezes ela derrapa um pouquinho no Português, deixa escapar um sotaque que mostra que ela saiu do Brasil faz muito tempo. E a Michi é cool. Se eu já conheci alguma cool girl na minha vida, ela foi a Michi.

Mas, mais do que qualquer outra coisa, a Michi é destemida. Parece que ela nunca tem medo de nada. Pode ser pular de paraquedas, pode ser ir sozinha para uma ilha no Irã, pode ser se desmontar pra montar de novo. Ela vai. Vai com tudo, mas também com leveza, uma curiosidade insaciável, uma vontade infinita do novo.

Costumo brincar que ela tem as ideias e eu tenho o entusiasmo. Do lado dela eu me sinto mais corajosa. Do lado dela eu me sinto mais livre.

A Michi também é meu colo, meu abraço, meu alento. Nos momentos de mais dor, mais do que eu achei que poderia suportar, ela veio me carregar. Às vezes eu nem preciso falar nada, e ela já sabe, sabe que eu preciso de um cafuné, de um carinho, de um porre fenomenal daqueles que a gente gasta o salário no bar sem nem saber com o quê.

Michi vive dizendo que um dia vai embora – e eu sei que um dia ela vai mesmo. A gente é do mundo, e isso nunca vai mudar.

Mas quando ela for, espero que ela saiba que ela foi um dos maiores presentes que essa cidade podia me dar.

 

Vlog: Existe amizade entre homem e mulher? – Feat. Will SJ

Spoiler alert: Existe. Um papo com o meu BFF, Will, sobre a nossa história de amizade, e sobre o porque dessa coisa de amizade entre homens e mulheres ser polêmica. Canal do Will: https://www.youtube.com/user/willstre…

Sobre a Bruna

A primeira lembrança que eu tenho da Bruna é do primeiro dia de aula na faculdade. Tínhamos que nos apresentar para turma num microfone. Ela deu um passo à frente, sacudiu os longos cabelos para longe do rosto, piscou os olhões por trás dos cílios compridos e começou a listar alguns fatos. Nada de mais, que afinal ninguém ali tinha nada de muito extraordinário para contar, até que ela começou a enumerar coisas banais de que gostava e emendou um “adoro sexo” sem alterar o tom de voz, sem nem pestanejar. Eu, que até aquele momento estava me sentindo a própria doutora em desenvoltura, olhei bem para aquela menina de gestos tímidos, franjinha e sotaque carregado do interior de São Paulo, e pela primeira vez a enxerguei.

A Bruna é assim. Ela fala. Para ela, tem coisas que são como são, e não há vergonha nisso.

A Bruna também é parceira. Ela transita entre todas as tribos. Vai do sambinha ao Audioslave sem criar caso. Com ela não tem isso da pessoa ser isso ou aquilo. Pode ser tudo ao mesmo tempo, que é melhor ainda. Essa foi uma das lições que eu aprendi com a Bruna.

Ela tem o riso solto, e o choro mais ainda. Gosta de aproveitar a vida, gosta de contar histórias, gosta de ouvir histórias. Houve um tempo em que éramos só duas contra o mundo, em conversas que se estendiam pela madrugada enquanto a gente olhava a cidade da janela do apartamento. Uma com a outra, a gente tentava entender as injustiças, as experiências, o que significava ser mulher, o que significava ser adulta, como lidar os medos, as frustrações, as tristezas. Talvez a Bruna não saiba, mas muito da minha personalidade se formou ali, e roubei muito do jeito dela de ver a vida para mim.

Uma vez, a Bruna se cortou num caco de vidro. Foi um corte muito fundo, e sangrou muito. Tanto que dias depois a cicatriz ainda estava bem feia e inchada,e todos nós nos compadecemos dela. Ela contou que o machucado ainda estava doendo, e todos os presentes começaram a exclamar. Na quarta exclamação, ela soltou:

– Ai gente, já pode parar. Eu só queria confete, já tá bom.

Essa foi outra lição que eu aprendi com a Bruna. Ela nunca tem medo, nem vergonha, de ser totalmente franca, mesmo nas coisas que a gente geralmente esconde. Ela escancara, não tem medo de rir de si mesma, de chorar por si mesma, de demonstrar o que está sentindo, de contar quando a vida não está perfeita, quando a vida incomoda, quando ela está sem forças.

Hoje em dia, a Bruna cortou os cabelos longos. Eles são curtos e coloridos, ela já não fala mais daquele jeito tímido, e tem muitos feitos extraordinários para contar. Como eu, ela também está tentando encontrar o seu lugar no mundo.

Qualquer que seja ele, uma coisa é certa: Ela nunca vai passar despercebida.