Novembro – 2011

Chega.
Eu quero sair da casca
Já não tenho mais tempo, nem idade, nem vontade
Pra esses medos
Eu quero colocar na cara uma mulher formada
Chega. Não vou mais me esconder atrás de uma máscara estúpida
Quero mostrar tudo que eu quero, que eu desejo e tenho medo
Porque não cabe medo para alguém que já sente tanta dor
Porque não faz mais sentido essa fantasia de menina ingênua
Eu quero, daqui pra frente
Expor toda a minha torridez
Eu acho que (finalmente) estou cansando de ser criança
Porque ser adulta é mais do que ser uma moça-bem-resolvida-dona-de-si-que-paga-os-impostos-e-administra-a-própria-vida
É existir de uma outra maneira
Eu quero sair dessa fantasia de garotinha intocada
Eu quero parar com o faz-de-conta de ser de todo mundo

E sentir
De dentro pra fora
Eu vou desabrochar
Porque tudo isso é muito pouco (não me serve)
Porque não quero me aproximar de ninguém para reproduzir receitas prontas
Cansei de brincar de casinha
O que eu quero é que todos os meus anos me coloquem numa plataforma
Para eu alcançar outro patamar
Onde todos são o que eu espero de qualquer pessoa completa (e nunca encontrei nenhuma)
E eu vou estar de pé, batom vermelho, nariz em pé, plena.

Diálogo expositivo

Janeiro -2012

Estava quente naquele quarto. Quente quase insuportável, aquele mormaço que entra pelo nariz e condensa tudo por dentro, as paredes encardidas e a luz do sol entrando pelas cortinas. Parecia um quarto de filme, daqueles filmes em que o mocinho americano está perdido em alguma cidadezinha da Colômbia e está curando a própria ferida de tiro-

Ela estava deitada de bruços, o corpo todo marcado, as unhas lascadas, o cabelo bagunçado fazendo um leque no travesseiro.- Você já viu o jeito que o cara resolveu essa parada na sua tatuagem?

– Hm?

O isqueiro raspou na pele dela – quase queimando.

– Legal. Olha depois.

– Ta muito tarde já?

– Eu preciso ir pra casa.

– Eu também.

– Todas as mulheres deveriam usar calcinha e sutiã assim, combinando. Fica bonito.

– É, estamos vivas apenas para o seu prazer visual.

Ele virou os olhos. Ela também.

– Imagina se eu tivesse uma doença contagiosa. Uma que passasse pela pele assim. Como aquela febre espanhola.

– Não era gripe espanhola?

– Foda-se, você me entendeu.

Ela estava suada. Queria sair daquele quarto e cair numa cidadezinha da Colômbia, ser raptada por um bandido com uma jaqueta de couro, que a enfiaria num carro antigo, a amordaçaria e a prendesse num cativeiro sujo no meio da amazônia.

– Estou com muita preguiça.

– Sério, que horas são?

E aí o bandido a trataria mal no começo, mas no fundo ele seria só um incompreendido e os dois se apaixonariam perdidamente e iram fugir juntos num carro furreca até o fim do mundo–

– Sei lá, como é que eu vou saber?

– Eu preciso me vestir.

Talvez seria melhor se fosse uma cidade fantasma. Se ela saísse e não tivesse mais ninguém – todo mundo tivesse sido morto pela porra da febre espanhola, vai saber, e ela ia andar sozinha pela cidade inteira, entrar em todos os prédios, todas as mansões, acabar com todo o vinho caro de cada uma delas e morrer de coma alcóolico em alguma cama king size em lençóis de seda-

Ela rolou na cama. Estava cheia de sono e precisava de um banho.

– Queria ser teletransportada pra casa agora.

A voz dela estava rouca e repetiu umas trezentas vezes na cabeça dela.

Ela queria sair daquele quarto e cair no céu; andar de nuvem em nuvem sozinha com o vento no rosto – talvez porque ela odiava o vento. Queria que o mundo inteiro coubesse em duzentos minutos de arquivo em vídeo comprimido com o codec certo para rodar em qualquer lugar. Um filme em que ela fosse a protagonista e que o clímax durasse os dois últimos atos.

– Qual é o nome daquele filme que o clímax dura quarenta minutos mesmo?

– Hã? Que filme? Eu não sei.

Ela se levantou. Ele também. Os dois saíram do quarto. Ela caiu num largo qualquer, que já conhecia e tinha que ir pra casa, fazer o mesmo caminho, nos mesmos ônibus.

Ela não foi.

Sentimental

Abril – 2012

E lá se vão quatro anos. De juntar as minhas coisas e colar a cabeça na janela ônibus, murmurando a minha promessa secreta. Lá se vão quatro anos indo e voltando, essa coisa tão mal-resolvida que eu já não sei mais se é ódio ou é amor. Belo Horizonte me dói por dentro, essa Avenida Afonso Pena que me corta pelos pulmões, a Praça da Savassi que eu tenho atrás do coração. Não sei como é, se algum dia ela me perdoa por ter ido embora, se um dia eu a perdôo por tudo que ela fez comigo, mas seja como for, quatro anos se passaram e agora que já não estamos mais de mal ela me alfineta por dentro pra me mostrar que não querer ser só é possível porque um dia eu fui.

No décimo-quarto dezembro

Dezembro – 2013

Eu sempre gostei de ter nascido nessa época do ano. Esse clima sanguíneo e exagerado, tão parecido com  a minha personalidade. Ou talvez minha personalidade foi se moldando a esses dezembros tempestuosos. Adoro que o ano acaba e eu estreio uma idade nova. Me força a pensar em mim mesma. E eu sempre adorei símbolos.
Adoro esses dias cheios de sol. Adoro esse clima de fim, de coisas mudando. Adoro, acima de tudo, as tempestades de caos que caem lá pelas cinco da tarde. Se eu pudesse ser um dia, seria o dia sete de dezembro.
Quanto mais eu vivo, menos eu tenho certezas sobre mim mesma. Achei que me conhecia tão bem, a minha vida inteira. Hoje, passei da idade em que acreditaria que minha vida ia começar. Às vezes, eu acho que ela ainda não começou. Tem um aviso? Um cartão, um telegrama que a gente recebe quando a vida realmente começa, ou a vida sempre começou e a gente que não percebe que estar vivo é estar vivo?
Muitas vezes, muitas, eu menti pra mim mesma. Mandei minhas vontades calarem a boca, porque elas não me conheciam. Fingi que não me importava com coisas que me doíam muito por dentro. Agora, eu não sei. Estou num momento de peças do quebra-cabeças todas espalhadas pela mesa. Mas, assim que é bom. Se eu puder ser mais eu mesma, eu mesma de verdade, vou conseguir ser mais feliz. É muito mais difícil do que eu imaginava, ser fiel à pessoa que sou lá no fundo.
Seja lá o que esse ano me reserva (apesar de fazer tantos planos, mas eles nunca dão muito certo), hoje eu vou tirar o dia para estar na minha companhia. E então, querida, o que você quer fazer? O que realmente vai te trazer paz? Eu já vivi muito mais que muita gente vive. Passei por todo o tipo de coisa. Como todo mundo, mas só eu sei o que é ser eu. E isso me basta.
Hoje, isso me basta. A calma dessa música vibrando dentro do quarto. A brisa soprando a cortina, os espelhinhos balançando. É bom ser eu mesma. É cada vez melhor ser eu mesma.
Parabéns pra mim.