Berlim é, de verdade, a cidade do pecado. É tanta liberdade, tanta permissividade, que muita gente se perde e nunca mais acha o caminho para a superfície. Porque tem outra coisa, Berlim é intensa. É um vortex que preenche todos os espaços da sua vida.
A questão é que quando eu lembro que Berlim fica na Europa, meio que tomo um susto, porque a sensação é que Berlim não fica em continente nenhum. É uma bolha destacada do resto do universo, com a suas próprias regras, sua própria língua, e o seu próprio povo. Berlinense de nascença é raro de se ver. Berlinense por vocação tem de monte; eles vêm de todo o resto da Alemanha e de todos os cantos do mundo, querendo se encontrar, querendo se perder, querendo se perder pra se encontrar. Nessa profusão de línguas, sotaques, desejos diferentes, uma coisa nos une a todos: A vontade de construir um lar para quem nenhum outro canto foi realmente casa.
Todos nós temos os nossos motivos para vir; mas o motivo para ficar é o mesmo. Berlim aceita. Berlim acolhe. Mas não vá pensando que é fácil, que é de mão beijada. Primeiro, Berlim te testa. O inverno é longo e escuro. O frio é quase insuportável. A burocracia coloca um impedimento atrás do outro. E tem o isolamento para quem não fala – ou fala pouco – da língua. Berlim é pra quem não tem medo de enfrentar a solidão mesmo, de meter a cara, de passar por cima, de insistir, insistir, insistir.
Aí quando você se prova, de repente ela se abre e te pega no colo. E todos nós, estranhos no ninho, ovelhas negras, patinhos feios, estamos em casa pela primeira vez. Daí você está no metrô depois de dois dias de Berghain e sorri para alguém que senta na sua frente no metrô, e recebe um sorriso de volta. Aquele sorriso cúmplice; eu vejo você. E eu te reconheço.
A armadilha é que o intensivão puro contato que é viver em Berlim não é com ninguém menos que a gente mesmo. A ideia que todo mundo tem de desanuviar é entrar num inferninho e dançar bate-estaca sozinho até o estresse ir embora. Numa cidade em que você pode ser o que quiser, as únicas perguntas que realmente importam são quem eu sou de verdade? E quem eu quero ser já que eu posso ser quem quiser?
Filosofia barata, talvez. Mas só quem já experimentou já sabe; Berlim vira a gente de cabeça pra baixo, revira, machuca, ensina, transforma. Porque aqui, não tem meio termo. Aqui se vive a vida no volume máximo.
É quase a mesma coisa. Quando eu esperava o 847P sentindo Itaim Bibi no meio da Lapa, a música alta nos ouvidos, pensando na taça de vinho que me aguardava em casa, é quase a mesma coisa de estar aqui esperando a U7 sentido Rathaus Spandau em Kreuzberg. Só que não é. Porque eu não sou mais a mesma pessoa.
Dizem que quando a gente muda para um lugar novo, a alma chega atrasada. Eu queria um corte brusco; realmente me livrar das coisas e situações que me deixavam segura e confortável, para me redescobrir, longe das características circunstanciais que ameaçavam me engolir. Queria ter coragem para priorizar o que realmente importa para mim.
O processo, porém, é muito mais difícil do que eu tinha imaginado, nas pequenas coisas do dia-a-dia. Queria conhecer pedaços meus que eu não conseguia acessar, mas estar sem a segurança de se cercar de pessoas que sabem quem a gente é é desafiador e desconfortável.
Eu vim, mas minha alma ficou para trás. Talvez com medo de vir também e se transformar em outra coisa – o desconhecido é sempre assustador.
E embora a resistência também tenha sido parte do processo, agora eu vejo que mesmo exacutando as mesmas tarefas simples do cotidiano, minha alma não é mais a mesmo. E às vezes é confuso. Me refazer, redescobrir o que eu gosto e não gosto, quero e não quero, me importo e não me importo.
Às vezes eu acho mesmo que o maior medo sempre foi o de ser livre. Porque eu sempre desejei muito a liberdade, mas eu tinha medo das mudanças que ela podia me causar.
Mas uma coisa é certa; agora que minha alma chegou, se instalou, se contaminou e se transformou, ela não volta a ser a mesma nunca mais.
Costumo dizer que eu estava num casamento longo e bem sucedido com São Paulo. Mas depois de oito anos, apesar de o amor não ter acabado, eu precisava explorar outras coisas, viver outras experiências. Numa viagem a passeio, me apaixonei perdidamente por Berlim. Decidi largar tudo para viver esse amor.
Mas essa é a versão curta da história.
Na verdade, ela começa em 2014. Na época, eu tinha acabado de sair de um relacionamento muito destrutivo, estava prestes a terminar um contrato de trabalho, confusa e sem saber qual seria o próximo passo. Eu e uma amiga marcamos de ir ao cinema ver Praia do Futuro, lançamento um dos diretores que mais gostamos – Karim Ainouz. Dois dos nossos amigos tinham trabalhado na produção, e além disso somos muito fãs do Wagner Moura, então não tinha como não ir. Mas não imaginava que ia sentar na cadeira e aquele filme ia se tornar o meu preferido.
Sempre gostei de filmes cheios de diálogos, com tiradas rápidas. Praia do Futuro me encantou justamente pelo silêncio e a capacidade de dizer muito sem dizer quase nada. Me identifiquei completamente com o personagem do Wagner, o Donato. Uma pessoa que precisou ir para outro lugar para se encontrar – como tinha acontecido comigo em São Paulo – e que acaba se encontrando se jogando de cabeça em paixões passageiras. Saí do cinema maravilhada, mas o fato da história se passar em Berlim para mim era apenas um detalhe até então.
A cena da briga se passa no Tiergarten – Meu parque preferido aqui em Berlim e lugar que eu visitei em 2015
Vamos então para 2015. Eu estava empregada, as coisas estavam caminhando. Só que eu começava a sentir que estava ficando enraizada demais na minha vida. Sempre tive vontade de morar em outro país, viver outras experiências, ver o mundo. Nunca quis ser uma pessoa que entra de cabeça na carreira logo após se formar na faculdade. Eu estava sentindo que aos poucos isso ia acontecendo comigo. Eu não sentia mais que era eu mesma. Não conseguia mais escrever, minha criatividade tinha secado. Eu sentia que precisava ser livre de novo, criar de novo, ter mais uma chance de aproveitar a minha juventude do jeito que eu sempre quis. Estava juntando dinheiro, sem saber bem qual era o plano.
Tinha uma viagem marcada para a Europa. Sempre tive vontade de ir, e era um sonho que estava realizando. Estava praticamente tudo acertado e Berlim não estava na lista dos destinos. Só que Zurique – uma das cidades pelas quais eu pretendia passar – começou a me parecer cara e complicada demais. Os preços eram absurdos, eu ia ter que trocar dinheiro, teria que valer muito a pena. Uma amiga que já conhecia Zurique disse que não tinha tanta coisa assim para ver e me aconselhou a ir para outro lugar. Eu já estava com o roteiro da viagem praticamente todo montado, e não sabia por qual outra cidade queria passar… Até que lembrei que Praia do Futuro se passava em Berlim. Mandei uma mensagem para o amigo que tinha trabalhado no filme, descolei a lista de locações e decidi: Iria para Berlim, visitar os lugares por onde os personagens do meu filme preferido tinham passado.
Assim fiz. Visitei as locações do filme numa passagem meteórica por Berlim. E me apaixonei. Eu me lembro inclusive do exato momento em que isso aconteceu. Eu já estava encantada com a paisagem cinza, urbana, cheia de grafites. Já estava balançada de ver tanta gente diferente convivendo junto. Era como a minha São Paulo, que eu tanto amava, só que nova. Mas decidi que era isso mesmo que eu queria quando saí de uma balada e o dia amanhecia. A balada tinha sido uma bosta (dica de amiga: Não vá no Matrix em Berlim) e eu estava com a energia meio baixa, me sentido meio mal. Sentei no trem para voltar para o hostel e uma hora, ele passou por cima do Spree. Eu olhei a cidade cinza no friozinho da manhã, e de repente, fiquei bem. Era uma sensação que sempre acontecia comigo em São Paulo, e para mim foi um sinal de que Berlim e eu tínhamos uma conexão especial.
Foto que eu tirei na minha primeira viagem para Berlim em 2015 – Aloka do grafite aqui enlouqueceu
Estava decidido. Voltei para o Brasil, me matriculei numa aula de alemão, comecei a juntar ainda mais dinheiro, e procurei meios de conseguir vir pra cá. Achei um mestrado que me interessava, em inglês, e ainda por cima de graça. Fui atrás de toda a papelada. Fiz o processo seletivo. Passei.
E assim, para encurtar um pouco a história, em setembro de 2016, eu vendi todas as minhas coisas, reduzi minha vida a duas malas, pedi demissão, me despedi dos meus amigos e da minha família e parti rumo a um amor à primeira vista, esperando que valesse a pena.
Foto no Tiergarten logo que eu cheguei
Mas aí, vou ser sincera com vocês. O começo não foi nada fácil. Quando eu saí de Belo Horizonte, aos 18 anos, para me mudar para São Paulo, nada me prendia lá. Sair de São Paulo foi completamente diferente. Eu tinha uma vida que eu construí, e eu amava. O choque foi grande. De repente eu estava sozinha num lugar em que não conhecia ninguém. Senti falta de tudo. Dos meus amigos, do meu apartamento, de sentir que pertencia a algum lugar.
Eu também tive que terminar um relacionamento que estava no auge para vir para cá. Mas isso é outra história, que talvez eu conte um dia.
Por fim, quebrei meu braço num incidente maluco, e isso deixou minha vida muito mais difícil. A solidão, a falta de independência e o frio do inverno pesaram demais. Fiquei mal, em muitos momentos. Quis desistir. Quis voltar. Tive medo de ter tomado a decisão errada. Que tipo de pessoa maluca faz o que eu fiz? Pelo menos em casa eu teria a companhia das pessoas que me amavam.
Fiquei muito em dúvida. Houve momentos em que eu cheguei a me dizer, “só até semana que vem”. Mas aí os dias foram passando. Eu fui conhecendo pessoas. As coisas foram acontecendo. E de repente, eu tive certeza de novo que essa foi a MELHOR decisão que eu poderia ter tomado.
Uma das coisas que eu mais queria vindo para cá, tem relação com esse blog. Eu queria ser criativa de novo, queria me sentir inspirada, queria me sentir eu mesma. Mais do que isso, queria te coragem para falar das coisas que sempre quis falar, da maneira que sempre quis falar, sem medo das consequências. Hoje em dia, quando eu olho para o tanto que produzi desde que cheguei aqui, eu fico feliz demais. Pode não ser nada, pode ser que poucas pessoas leiam. Mas eu saber que posso me expressar me faz sentir que a minha criatividade nunca tinha ido embora de verdade. Ela só estava adormecida.
Eu e minhas perninhas finas apreciando o frio
Mas mais do que isso. Hoje eu estava voltando para casa, andando na rua, observando as luzes dos postes numa rua comprida e bem iluminada.Estava cheia de gente. Tinha um cara tocando a trilha sonora do Rei Leão num clarinete. E eu senti uma certeza absoluta: Eu estou exatamente onde deveria estar.
Pode parecer piegas, mas relendo esse texto e lembrando de como tudo aconteceu, chorei. Não escute meus conselhos, eu sou uma pessoa um pouco inconsequente. Mas eu recomendaria largar tudo por uma paixão, como eu fiz, para qualquer pessoa.
Ah, Berlim, Berlim… Eu te quis tanto, eu sonhei tanto em estar aqui. Eu nunca fui de resistir às grandes paixões, e com você, foi amor à primeira vista. Daqueles de largar a família, o emprego, a casa, para se viver de amor.
Eu vim querendo descobrir você, mas na verdade, acabei me descobrindo. A gente nunca acaba de se conhecer, mas é só fora da zona de conforto o que está lá no fundo é revirado e vem parar na superfície.
Caminhar nas suas ruas me lembra o tempo todo que eu sou uma forasteira. É como se eu estivesse vendo uma vitrine de uma cidade da qual eu ainda não faço parte. Quando eu paro para observar os jovens casais nas manhãs de domingo nas praças do Friedrichsain, nas noite iluminadas no Mitte, deitada no gramado do Tiergarten ou rangendo os dentes ao voltar para casa de madrugada na Warschauer Straße, quando eu tropeço na língua arrastada, quando o jardim amanhece coberto de gelo, eu sinto que ainda estou vivendo uma paixão platônica, e às vezes nos esbarramos nas esquinas, nos abraçamos e nos beijamos, mas depois cada uma segue o seu caminho.
Mas eu vim para me perder, então eu quero que você me arraste, que você me afogue, que você me cuspa do outro lado mudada.