
A morte de Hugh Hefner, fundador da Playboy, no mês passado, reacendeu a polêmica que acompanha a revista desde o seu nascimento. Novamente, Hugh foi acusado de machismo, misginia, assédio, e de usar a sexualidade das mulheres para lucro próprio. Diante disso, muitos saíram em sua defesa, alegando que a Playboy fez sim, muito pela libertação sexual e inclusive contribuíu diretamente com causas consideradas feministas, apoiando financeiramente fundações pró-aborto no Estados Unidos.
A Playboy fez parte da minha vida desde quando eu era criança. Nunca vou esquecer do outdoor com a Tiazinha mascarada, coberta apenas por um boá preto e o texto que dizia, “olá, sobrinhos”. No início da adolescência, no fuzuê da descoberta da minha bissexualidade, baixei muitos ensaios e acho que alguns deles são de grande refinamento estético – principalmente os da Playboy Brasil, a americana sempre foi meio farofada mesmo.
Até então, sabia muito pouco sobre a história da revista e sobre o seu fundador, mas isso mudou quando eu comecei a assistir Girls of The Playboy Mansion, no E! O reality mostrava a rotina de Hefner e suas três (principais) namoradas, Holly, Bridget e Kendra. O programa era muito divertido, e mostrava uma vida ótima; as três meninas pareciam se dar bem e adorar a vida que levavam, a atmosfera de glamour e poligamia amigável transparecia muito natural. Hefner era um coadjuvante na série – sem dúvida as três namoradas brilhavam mais – mas quando ele aparecia, até dava para ententer porque jovens atraentes iam querer se relacionar com um senhor de mais de oitenta anos.
Hefner demonstrava ser uma simpatia; carismático, carinhoso, divertido, inteligente. Suas aparições e depoimentos pontuais no reality pintavam a imagem de um homem respeitoso e bem-intencionado. Era fácil esquecer que existia uma relação de poder enorme entre Hefner e suas namoradas, talvez por um desejo natural que a gente tem de que o mundo seja mais simples às vezes.
Claro, as coisas não eram bem assim.
Desde o início da Playboy, Hefner se apresentou para o público com uma imagem de glamour, sofisticação e libertação sexual. E desde o começo também usou métodos pouco ortodoxos para alcançar o sucesso. O primeiro ensaio da revista foi com fotos de Marilyn Monroe – feitas antes da fama, e compradas por 500 dólares. A marca Playboy se fez às custas da sexualização da mulher, especialmente de tirá-la de seu domínio.
Quando Kim Kardashian foi convidada para posar para a revista, no início da sua carreira, ela aceitou desde que as fotos não revelassem nudez total. Um approach estranho para uma revista de nudez, talvez. Mas esses eram os termos. A sessão de fotos foi veiculada no reality de Kim, o Keeping Up With The Kardashians, e ela foi pressionada a tirar cada vez mais peças de roupa até sua mãe e agente ter que intervir.
Na minha opinião, essa cena é emblemática do quanto a Playboy se utiliza de suas modelos como produtos – sob o verniz da libertação sexual.
Sem moralismo. Putaria é comigo mesmo, vocês sabem. E acho que ensaios sensuais podem sim ser empoderadores. O problema, como eu já falei antes, é que a objetificação da mulher acontece quando a sua sexualidade é tirada do seu domínio para servir ao outro – para o olhar masculino, ou para vender algo. A Playboy se utiliza dela para os dois – a libertação sexual que ela vende não é para satisfazer a fantasia das mulheres que estão posando – é cuidadosamente customizada para atender ao imaginário masculino.
Alguns anos após a estreia de Girls of The Playboy Mansion as três namoradas originais saíram da mansão – e terminaram seu relacionamento com Hugh Hefner. Foi então que Holly Madison, a namorada “número um”, públicou uma autobiografia contando das suas experiências na Playboy. Longe de ser um conto de fadas, a vida de Holly na mansão foi um episódio traumático. Ela relata em detalhes como Hefner mantinha as coelhinhas em regime rígido, incluindo toque de recolher, e pouco dinheiro. O ambiente da mansão era tóxico, com muitas drogas, e Hefner instigando a competição entre as meninas para se sentir mais poderoso.
Infelizmente, nada disso surpreende muito. Muitos são os homens que usam de um discurso de empoderamento feminino para conseguir poder, sexo, ou os dois. Hefner fez pouco caso das críticas que a Playboy recebeu ao longo dos anos, defendendo que a revista contribuiu para a libertação sexual nos Estados Unidos e no mundo. O que pode até ser verdade, mas a libertação sexual de quem? Fica claro que nesse jogo, as mulheres foram apenas peças para o lucro e a exploração masculinas.
O problema não é tirar a roupa, o problema não é falar de sexo. O problema é reservar a seção de fotos sensuais apenas para as mulheres, e a seção de entrevistas revolucionárias apenas para os homens. O problema é vender o tesão e as fantasias femininas como existentes única e exclusivamente para atender aos homens.
Fica claro que a Playboy é um reflexo de como o próprio Hefner viveu sua vida: Com libertinagem e glamour, mas dispensando tratamento sub-humano às mulheres fizeram a revista – e o seu pai – serem um sucesso.