Nunca ninguém morreu de amor

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Hoje em dia eu sei enrolar meus próprios cigarros.

Lembrei disso hoje, de quantas vezes você gritou comigo porque eu enrolava cigarros deformados, e pensei que nunca mais precisei da ajuda de ninguém pra sustentar meus vícios.

Agora já faz um tempo que eu não sei mais de você, nunca mais quis ouvi dizer, tantas vezes desejei que você estivesse longe, ou que morresse mesmo, para que o fantasma da sua presença me deixasse em paz pra sempre. Já faz tempo desde que a ansiedade misturada com paixão me deixava doente, da sua violência, já faz tempo que eu não preciso mais lidar com seus rompantes, pisando em ovos para não detonar a sua ira, implorando uma migalha de carinho ou de atenção que você sempre parecia ter pra todo mundo menos pra mim.

Tanta coisa que eu não disse e nem faria sentido dizer, não sou capaz mais de reconhecer nem um traço da pessoa que você foi, ou fingiu ser. Pensar que dormi ao seu lado todas as noites por tanto tempo e hoje não me restou nem um como vai para perguntar.

O seu empenho em me machucar doeu mais do que todas as traições, todas as brigas, todas as ofensas proferidas com veneno. Já faz um tempo de quando eu senti essa dor, achei que ela fosse me matar, como podia quem eu mais amei me dilacerar daquela forma – mas naquela época mal sabia eu que a dor estava só começando, que eu estava a ponto de enfrentar muito mais do que eu jamais seria capaz, mais do que eu via nos meus piores pesadelos.

Lembra daquela vez que nos perdemos embriagados numa manhã de muito sol, cambaleando pela cidade embalados pela euforia artificial, procurando um lago e acabamos atentando ao pudor no meio do gramado em plena luz do dia? Achávamos que estávamos tão longe de casa, e veja só que agora estou morando a poucos quarteirões dali, nem reconheço mais a planta da cidade como a vi naquela manhã, a névoa que me acompanhava quando eu estava com você já se dissipou completamente.

Ainda tenho rompantes de rancor, de ódio, de fraqueza, mas hoje em dia pouca coisa daquela época ainda faz sentido. Sei que é clichê dizer que a eu de antes não existe mais, mas ela não existe mesmo, não tinha como existir. Aquela pessoa que vivia pra morrer de amor acabou; já não consigo mais me consumir no outro como era costume, já não tenho tempo para essas alucinações quando estou bastante preenchida de mim mesma – mesmo quando não estou dormindo sozinha.

Às vezes o cinismo me incomoda, e me pergunto se algum dia vou ser capaz de me entregar de novo, de amar de novo, com intensidade e fúria, ainda que com menos violência. Mas ando chegando à conclusão, que demorou, mas chegou, de que sou meio grata por toda a experiência traumática que foi estar ao seu lado. De fato, nunca mais vou ser a mesma, porque foi só com um desastre tão grande que eu me forcei a ver em mim tudo que eu não queria enxergar, para tentar para de usar o amor como uma lâmina para me cortar, para ser honesta e limpa com os meus hábitos autodestrutivos, para poder enrolar meus próprios cigarros, me matar e me salvar sozinha.

Eu sou uma pessoa melhor depois de você, sou uma pessoa melhor também por causa de você, e veja só a ironia disso tudo.

Você foi capaz de me salvar de você; a única coisa que nunca vai conseguir fazer por você mesmo.

Diálogo imaginário

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Abri a janela. Berlim entrou me fustigando com seu vento gelado de inverno, jaqueta de couro, uma garrafa de Club Mate Vodka na mão. Roubou meu último cigarro sem a menor cerimônia.

– Ei! – Eu protestei, ela não deu atenção. Saiu examinando meu quarto, se largou numa cadeira.

– E então, dona Ana Pimenta, Pimenta Cítrica… Está de volta? – Fiz que sim dando de ombros. – E agora, fica de vez? Ou decidiu que é nômade por natureza?

– Não decidi nada.

– E já achou o que veio procurar aqui?

– Estou quase.

– Eu acho que dessa vez você fica.

– É mesmo?

– Eu acho. Acho que você pode até tentar fugir de quem é, mas não tem jeito. Você tem talento natural pra falta de limite, pra autodestruição, para almoçar álcool e jantar cigarros, pra se perder em hedonismo até esquecer quem foi um dia.

Eu recostei na cadeira. Em outros tempos, aquele tom assertivo teria me intimidado. Não mais.

– Será? Será que eu sou só isso mesmo? Não sei… E também não estou muito certa que você seja só isso. Acho que tem muito mais que você esconde.

– Por quê? Você esconde muita coisa?

– Mostro pra quem vale a pena.

Ela se inclinou na cadeira, soprou a fumaça no meu rosto, estreitou o olhar.

– Pra mim vale a pena?

– Tá tarde. Tá frio. A gente conversa outra hora.

Fechei a janela, a expulsei dali. Ela podia esperar até amanhã. Agora, nenhuma cidade, nenhuma pessoa, nenhuma decisão.

Só o silêncio do meu universo particular.

Falando sério

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Eu gosto de você. Gosto do seu corpo coberto de tatuagens, gosto do seu jeito manso, gosto dos nossos dias perdidos em ressaca no seu apartamento, gosto desse seu sotaque que eu não consigo entender antes do terceiro drink, gosto quando o álcool mela a nossa comunicação e faz tudo ficar mais fácil, gosto das marcas dos seus dedos no meu pescoço e na minha bunda no dia seguinte, gosto do seu pendor pra autodestruição tão parecido com o meu.

Mas você não imagina que às vezes quando a gente tá junto e eu já tô muito bêbada eu ainda penso no meu ex namorado, tem tanta coisa sobre mim que você nunca vai saber, tem tanta vida me esperando em dois cantos diferentes do mundo, e aqui eu nem existo, eu sou só um sopro e pra você eu sou só uma miragem, o que acontece aqui está desconectado do resto da minha vida, entende, e o efêmero é o que faz ser bom, eu gosto da folga de ser quem eu sou, a bagagem às vezes pesa, então se a gente puder deixar ela um tempo no guarda-volumes melhor.

Eu não gosto quando você blefa e se faz de difícil, para que complicar as coisas, mas se tem que ser assim, tudo bem, porque eu estou cansada do jogo mas ainda sei jogar, mas eu queria que você entendesse que se a gente está aqui junto é por algum motivo, seja pela putaria ou pela companhia, às vezes é tão exaustivo manter a pose, às vezes a gente se sente só, e tá todo mundo morrendo de medo de se estrepar, mas paciência, aproveita que eu to aqui de mãos livres sem bagagem pra te fazer um cafuné ou te arranhar as costas, e depois, depois é depois, você não ve que a gente ta perdendo tempo, se você puder parar de fingir eu agradeço, até porque eu me irrito muito com o fato de que funciona e eu fico querendo te ver toda vez que você some, eu não sou sua, nem nunca vou ser, mas agora posso ser, só um pouco, só um pedaço, só uma parte que existe agora e depois vai ser como se nunca tivesse existido.

Laceração

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Fonte: Wattpad

Que loucura isso aqui. Parece que a gente está numa bolha isolada do universo inteiro. O frio na barriga que eu sinto é claustrofóbico. É exaustivo ficar perto de você. Meus nervos ficam tão hiperativos que eu preciso de dias pra me recuperar das ressacas que você me causa.

Parece que o seu toque se encaixa no meu corpo com precisão cirúrgica. Eu estou vendo você me olhar desse jeito como se você achasse que eu sou demais pra você, e quem sabe deve ser mesmo, não é isso que todo mundo acha sempre, então diz. Fala o meu nome. Estala a consoante no céu da boca. Deixa as vogais derraparem nas arestas do seu sotaque. Eu quero ouvir você me chamar, quero ouvir meu nome estourando da sua boca como uma bolha de sabão. Eu quero existir nos seus lábios. Eu quero existir. Eu quero existir nos outros, quero sentir o que eu penso e o que eu sinto faz algum sentido para além dos meus momentos de solidão com a máquina de escrever. Estou cansada de ir, de voltar, de tentar, eu quero me desmontar, eu quero me deixar revirar, eu quero a verdade para além das personalidades inoxidáveis que a gente inventa. Toda história tem sempre dois lados, ninguém é exemplar o tempo todo, não quero ser nada, mais nada, não quero mais nenhum adjetivo chique, eu só quero a invasão do seu beijo febril, a dor do seu toque, todas as filosofias esquecidas no pé da cama. Só você, o meu nome, e as nossas inseguranças, brincando juntas na escuridão.

Sobre a Bruna

A primeira lembrança que eu tenho da Bruna é do primeiro dia de aula na faculdade. Tínhamos que nos apresentar para turma num microfone. Ela deu um passo à frente, sacudiu os longos cabelos para longe do rosto, piscou os olhões por trás dos cílios compridos e começou a listar alguns fatos. Nada de mais, que afinal ninguém ali tinha nada de muito extraordinário para contar, até que ela começou a enumerar coisas banais de que gostava e emendou um “adoro sexo” sem alterar o tom de voz, sem nem pestanejar. Eu, que até aquele momento estava me sentindo a própria doutora em desenvoltura, olhei bem para aquela menina de gestos tímidos, franjinha e sotaque carregado do interior de São Paulo, e pela primeira vez a enxerguei.

A Bruna é assim. Ela fala. Para ela, tem coisas que são como são, e não há vergonha nisso.

A Bruna também é parceira. Ela transita entre todas as tribos. Vai do sambinha ao Audioslave sem criar caso. Com ela não tem isso da pessoa ser isso ou aquilo. Pode ser tudo ao mesmo tempo, que é melhor ainda. Essa foi uma das lições que eu aprendi com a Bruna.

Ela tem o riso solto, e o choro mais ainda. Gosta de aproveitar a vida, gosta de contar histórias, gosta de ouvir histórias. Houve um tempo em que éramos só duas contra o mundo, em conversas que se estendiam pela madrugada enquanto a gente olhava a cidade da janela do apartamento. Uma com a outra, a gente tentava entender as injustiças, as experiências, o que significava ser mulher, o que significava ser adulta, como lidar os medos, as frustrações, as tristezas. Talvez a Bruna não saiba, mas muito da minha personalidade se formou ali, e roubei muito do jeito dela de ver a vida para mim.

Uma vez, a Bruna se cortou num caco de vidro. Foi um corte muito fundo, e sangrou muito. Tanto que dias depois a cicatriz ainda estava bem feia e inchada,e todos nós nos compadecemos dela. Ela contou que o machucado ainda estava doendo, e todos os presentes começaram a exclamar. Na quarta exclamação, ela soltou:

– Ai gente, já pode parar. Eu só queria confete, já tá bom.

Essa foi outra lição que eu aprendi com a Bruna. Ela nunca tem medo, nem vergonha, de ser totalmente franca, mesmo nas coisas que a gente geralmente esconde. Ela escancara, não tem medo de rir de si mesma, de chorar por si mesma, de demonstrar o que está sentindo, de contar quando a vida não está perfeita, quando a vida incomoda, quando ela está sem forças.

Hoje em dia, a Bruna cortou os cabelos longos. Eles são curtos e coloridos, ela já não fala mais daquele jeito tímido, e tem muitos feitos extraordinários para contar. Como eu, ela também está tentando encontrar o seu lugar no mundo.

Qualquer que seja ele, uma coisa é certa: Ela nunca vai passar despercebida.

Espiral

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Fonte: Tumblr 8tracks

Tá frio, tá frio pra caralho, mas eu não sinto mais nada, as pontas dos dedos dormentes enquanto você abre a minha boca e despeja mais Jägermeister. Essa situação é ridícula, e talvez nós dois estejamos velhos demais para estarmos bêbados nos beijando em cima do capô de um carro qualquer, minha calça grudada na neve e no metal. Mas foda-se também, eu sempre odiei tudo que é morno e prefiro estar assim, prefiro os seus beijos trôpegos, minha personalidade dionisíaca se encaixa tão bem na sua, talvez seja destino que vagabundos acabem se esbarrando nos cantos do mundo, talvez nós só estejamos nos recusando a crescer, mas eu adoro ser assim toda pequenininha pra minha cintura caber direitinho nas suas mãos, tem horas que me dá vontade de te engolir, tem horas que me dá vontade de correr que essa loucura toda só pode acabar quando eu me machucar mas foda-se, foda-se, foda-se, eu tô tão bêbada e você também, despeja mais álcool na minha boca, me dá um banho, me leva pra casa, arranca minha roupa, me come até a gente desmanchar na minha cama.

***

A gente entrou na banheira de roupa e tudo, e quando eu olho no espelho parece que meu coração tá batendo dentro do meu crânio, essa cidade, essa cidade é a cidade do pecado, eu vim aqui pra me perder, e enquanto você olha pra mim com essa cara de quem mal consegue focar aquela música vem na minha cabeça, I just wanna turn the lights on, in these volatile times… Mas tá certo, eu queria ser livre, e eu estou sendo livre, é que liberdade é uma coisa perigosa, ainda mais pra gente como eu, mas tá tudo certo, eu tô tão descolada da pessoa que eu fui que eu acho que ela não volta nunca mais e isso é bom, ela tinha medo, e eu não tenho mais medo de nada, então vem, turbilhão por turbilhão a gente se neutraliza, se for pra doer deixa doer com força, se a cidade é fria e o inverno é longo, vamos incendiar essa porra toda com gasolina e autodepreciação, até não restar tijolo sobre tijolo.

Até eu me acabar.

Até a gente acabar.

Até a onda quebrar, arrasar e ir embora, pra eu arrumar a bagunça depois.

Veni, vidi, amavi

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Uma coisa é certa: De falta de amor eu não morro. Posso morrer por excesso dele, ou excesso de inconsequência, ou infarto depois que meu coração bater demais – mas não de falta de amor. Sei que ultrarromantismo é démodé, mas não posso evitar algo que está em cada uma das minhas células – essa vontade incontrolável de me atirar no fogo toda vez que ele aparece na minha frente. E eu que sou uma pessoa até razoável em muitos setores da vida, não tenho escrúpulos em se tratando de amor. Porque é só assim que vale a pena. Muita gente se admira e não consegue entender esse meu afã de viver as paixões até a última gota como se elas fossem veneno. Mas o que elas não sabem é que em troca eu levo pra mim uma coleção de memórias que valem vidas inteiras. Eu vivo mil anos em uma semana. Eu vou viver muitas vidas em uma só. Então, na minha lápide, por favor coloquem que eu vim, eu vi e eu amei. E se eu morrer de amor, ah antes seja, do que morrer de falta dele.

Inveterado

Meu Julho foi como um sopro de sonho que invadiu os meus dias. Tanto que parecia que eu estava vivendo a vida de outra pessoa. Tudo ficou em pausa. Fui abrandar a aspereza do cotidiano na sua voz baixinha, sua doçura inesgotável, fui me inspirar nas suas histórias, na sua coragem, no seu jeito de se atirar sem medo nas coisas – afinal, não deveria ser assim? Eu me afundei, me afoguei nessa nossa bolha de languidez e ternura. Fazia muito tempo que o sol por dentro não brilhava tão forte. Eu me deixei levar pelo seu senso de companhia. Eu me deixei me perder nos seus braços e o deixei penetrar fundo em cada um dos meus poros. Porque a gente se entendeu. Porque não tivemos medo. E agora, eu estou aqui me perguntando como eu consigo fazer isso tantas vezes. Como eu tenho coragem de enfiar meu coração no liquidificador sabendo que vai doer. Como eu tenho a capacidade de continuar me entregando tão completamente a tudo que vem e não fica. Mas eu sei, eu sei que meu Julho foi só meu e só nós dois sabemos o quanto. E eu vou levar cada sussurro, cada segredo, cada momento pelo resto da minha vida. Agora só me resta respirar fundo, juntar meu pedacinhos e continuar a estrada. Ele pode me levar pelo mundo afora no seu caderninho. Quem sabe um dia o universo se encarrega de nos esbarrar outra vez.